Divagava pela janela quando o juiz lhe solicitara a atenção pela segunda vez. A seu lado, Augusto movimentava a cabeça num gesto positivo. Ao que tudo indicava, o que lhe restara era o sim. Não o fez com receio. Augusto, além de advogado de confiança, era também o irmão.
Do outro lado da mesa, a ex-mulher forçava o perfil para evitar a troca de olhares. O rosto indicava ressentimento, embora Fernando não entendesse bem o porquê.
Suspeitou da famigerada sinceridade, traço marcante de seu comportamento. Pessoas, por vezes, queixavam-se dela. Entendeu que falar tudo o que pensa, quando não fere, mata o outro, a si mesmo, ou os dois juntos.
A mulher, encantadora aos olhos do passado, hoje se mostrava feia e amarga. Pensou que talvez essa fosse sua fisionomia desde sempre, e ele falhara na percepção — da paixão cega passou ao comodismo.
Não tinham filhos, e, embora não declarada, suspeitava que essa fosse a grande razão da insatisfação de Elisa. Ao questioná-la, nas inúmeras discussões dos últimos anos, a queixa era do quanto mudara nos doze anos juntos.
Não podia culpá-la, de fato ele havia mudado, no casamento e na vida. O reflexo disso certamente afetara o relacionamento, mas sentia que era inevitável. Nunca tinha se sentido tão bem. A disposição para rejeitar as novas descobertas era nula.
Com o sim veio o acordo, e em seguida as assinaturas de consenso. Tudo muito rápido e sem emoção. Preferia estar em casa terminando o romance que iniciara há seis meses. A história chegara num ponto decisório, em que não sabia se o melhor era matar a coadjuvante, ou mantê-la atormentando o protagonista.
A morte era sempre uma saída simples para resolver questões intermináveis.
Tinha somente um mês para entregar o trabalho e todo aquele teatro lhe parecia um total desperdício de tempo.
Na saída, pegou carona com Augusto. O evento desagradável na vara de família o levou a mais uma de suas inúmeras reflexões. Já no carro, procurou pela palavra do irmão: — Acha que mudei?
— Todo mundo muda um pouco, normal. E você sempre foi diferente, puxou papai.
— Mamãe falava isso toda vez que queria me por pra baixo.
— Dona Marta e suas táticas de controle! Só me dei conta disso na terapia. Mamãe reclamava direto do papai, dizia que era bipolar. Depois vi que falava isso só de sacanagem.
Parados no sinal, observam uma moça fogosa atravessando a rua. Fernando se lembra que agora poderia olhar para outras mulheres sem receio das crises de ciúmes: — Mulheres e suas armas dramatúrgicas.
— Cara, só sobrevive quem faz teatro.
— É... preciso aprender.
Augusto confere o celular: — Vera agarrou no trabalho. Preciso pegar Julinha. Tá bom aqui pra você?
— Tá ótimo, vai lá. Valeu pela força. Abraço na Vera e na Juju!
Fernando conferiu as horas e verificou que estava atrasado. Tinha marcado uma visita a um imóvel que pretendia comprar. Apertou o passo. No caminho, ainda amargando os problemas vividos no segundo casamento, lembrou-se de um episódio no último emprego, há dois anos. Após seis meses de trabalho, o chefe, um amigo de faculdade, convocou-o em sua sala.
No passado, via Arthur como um estudante medíocre, mas algum valor devia ter, afinal, hoje era diretor da empresa: — Então, Fernando, direto ao assunto. Te contratei porque é amigo, responsável. Mas queria um aliado, meus olhos da nuca com o pessoal. Mas cê se rebaixou ao nível deles, virou amiguinho dos caras!
Surpreso, Fernando não se lembrava de ter sido solicitado para vigiar os colegas. Se fosse, não teria aceito o emprego. Detestava ser vigiado, então não se prestaria a tal papel. Arthur continuou: — Tem que se impor, senão perde o respeito. Vai por mim, tô acostumado com esse povo. Cê tá acima deles, é sênior, pô!
Pensou por uns segundos antes de responder: — Olha, tô surpreso. Achei que o feedback era sobre trabalho. Pelo visto o que te incomoda é meu jeito de ser. Deixa eu te falar...na real, levei quase meio século pra me aceitar assim! Cara... preciso digerir isso, confesso que tô desapontado, nem sei o que dizer.
Fernando não conseguia disfarçar a chateação. No dia seguinte, a contragosto de Elisa, pediu demissão. Alegou inadequação de sua personalidade às expectativas da empresa. Tinha alma de artista, queria escrever. O engessamento do mundo corporativo não lhe permitia aflorar o melhor de si.
A buzina de um maluco impaciente o trouxe de volta. No caminho da imobiliária, pensou que a situação com Elisa era exatamente a repetição do que vivera no trabalho. Não estava mais disposto de negar seu melhor lado. O momento de amor próprio era pujante. Precisava ser vivido, e queria fazê-lo intensamente. Que Elisa fosse ser feliz com outro homem, aos moldes de sonhos e padrões medianos. Fernando não se sentia ordinário. Seus anseios e questionamentos estavam além do entendimento de Elisa, como da maioria das mulheres que conhecera até então. Pensou que talvez não fosse mesmo alguém para se relacionar a longo prazo. Não poderia preencher grandes ambições familiares.
O corretor já o aguardava do lado de fora. Seguiram para o endereço do imóvel.
— O senhor vai adorar a casa! O projeto é dos anos noventa, de um arquiteto famoso, todo reformado internamente por uma decoradora bam-bam-bam daqui! Piso de porcelanato, armários em laca, puxadores cromados, moderníssimo! Ar-condicionado novinho, sistema de vigilância... uma beleza! E o melhor: uma barganha! Os proprietários estão precisando vender com urgência. Logo pensei no senhor.
Fernando prosseguiu apenas ouvindo. Como não aparentava entusiasmo, a verborragia do corretor preenchia o vazio: — Chegamos! Veja que maravilha! Olha esse jardim!
Mas os olhares de Fernando se voltaram para o sobrado ao lado.
Percebendo a distração, o corretor não hesitou: — Uma aberração, não? Imagina você que os proprietários se separaram, mas precisaram viver na mesma casa por um bom tempo. Mulher dum lado, marido doutro. Ela queria reformá-la, ele não, deu nisso aí. Agora tá à venda, mas se não reformarem vai ser difícil.
Fernando olhava fixamente para aquela fachada que, sem saber a razão, prendia a atenção. Mas foi novamente interrompido pelo corretor: — Pois bem, quanto à casa que viemos visitar, tenho certeza, irá encantá-lo por dentro também. O senhor me acompanhe, por favor.
Fernando estava impaciente. O dia fora desagradável e a falação do corretor o deixava ainda mais irritado: — Ok, Melo, tá visto! Amanhã te dou retorno. Tenho outro compromisso agora. Pode ser? — Na saída, Fernando fitou novamente o sobrado ao lado.
A sessão de terapia era às cinco. Sentou-se no sofá sem cerimônia: — Hoje tem pano pra manga. Dia chato. Mas não tô querendo falar de coisa ruim não. Vi essa casa, um sobrado. A fachada prendeu meu olhar de um jeito que não sei nem te explicar. O corretor a chamou de aberração! — risos.
— Mas o corretor te chamou pra mostrar uma aberração? — com humor — como é isso?
— Não, não! Me mostrou a casa ao lado. É que bati o olho e deu um click. O visual da fachada era dividido ao meio. Bem estranho mesmo. Uma metade era toda reformada, disfarçava a arquitetura da época. Na outra metade era o contrário. Dava pra ver que a casa era bem antiga, tipo sobradão, paredes e telhas envelhecidas. Era esquisitona, mas interessante. Não sei por que gostei, mas pensei em comprá-la.
— Por que você compraria uma casa esquisitona?
— Sei lá. Me senti à vontade.
— Viu seu reflexo na casa?
Fernando levantou as sobrancelhas e tombou o rosto em dúvida. A terapeuta continuou a apertá-lo: — Temos trabalhado intensamente a aceitação de sua personalidade multifacetada. Essa casa seria você? Acha que a atração por ela seria o resultado do processo dessa autoaceitação que temos trabalhado?
Fernando olhava para cima buscando respostas: — Não tinha pensado nisso. — Saiu pensativo. A última frase da psicanalista, sempre impactante, grudava na cabeça.
Passou a noite em claro. Tão logo amanheceu, saiu decidido. Procurou o corretor: — Melo, vamos fechar o negócio! Quero o sobrado ao lado, a aberração!
— Sério? Claro! Sente-se. Vou pedir pra providenciarem os papeis. Os proprietários estão dispostos a dar um desconto pra ajeitar a fachada. Reformada vai ficar muito boa!
— Ótimo, aceito o desconto, mas não vou fazer reforma nenhuma. Vai ficar daquele jeito mesmo.
Percebendo a estranheza do corretor, Fernando então lhe diz sorrindo: — É que nos discos de vinil sempre gostei mais do lado B, aquele que ninguém ouve quando compra.
Fechado o negócio, voltou para o apart-hotel. Nada ali se parecia com ele. Buscou pela música que o acolhesse. Um poema brotava dos rascunhos de frases isoladas — Procura-se amante do ser em vinil — lado A, lado B, num só disco — faixa boa, detestável, arranhada — chiado de antigo, precisa de cuidado...
Seu processo criativo, intimista e dolorido, geralmente nascia da necessidade imediata de pôr para fora os incômodos.
Sentia-se como as ostras de Rubem Alves que não fazem pérolas quando estão felizes.
Ainda assim, era sempre um momento revelador e essencialmente curativo. Na cabeça a certeza do título — Ser em vinil.
Falar dos discos ultrapassados lhe parecia a forma mais apropriada de falar sobre si mesmo.
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