cartas e reflexões
disposta a escutar o vento, trocaram confidências
Sobre o documentário ficcional “LE VOYAGE DE BASHÔ”
Diretor: Richard Dindo
https://www.youtube.com/watch?v=FDImvyrDRuI&t=13s
Auckland, 29 de setembro de 2024
Vi. Fui e voltei algumas vezes em determinados trechos. Esse é o lado bom de ver filmes sozinho. E esse certamente veria sozinha, meu marido não daria conta. Definitivamente, filme devagar é comigo. No fim, não tem aquele corte abrupto para a realidade, quando o outro acende a luz ou fala qualquer coisa que te tira do universo em que estava até poucos segundos atrás.
Antes mesmo de qualquer mensagem escrita ou falada, minha percepção vai direto para a música e a imagem, em qualquer filme, não tem jeito. Fiz alguns prints. Achei a fotografia maravilhosa. Em alguns momentos o claro e escuro se aproximam da perfeição. O filme me deu a possibilidade de apreciação dessas imagens com sons da natureza e instrumentos de poucas notas musicais. Coisa de japonês! Mas até a voz em francês entrou em harmonia, para minha surpresa. Parabéns ao diretor.
Entendo que muita gente não consiga ver o filme, vivemos no mundo dos TDAHs. Cada época tem seu transtorno ou doença “da moda”. O filme roda em uma rotação atípica para os dias de hoje, acho até que em culturas orientais, haja vista a produção de alguns animes frenéticos, onde tudo é muito rápido, instantâneo. Divertir-se é obrigatório. Há a necessidade de preencher o silêncio com nossas opiniões e o vazio com qualquer coisa. Olha eu aqui nesse textão!!!! rsrsrssr
A simples observação sem falas é um incômodo.
No meu caso, enquanto criança e adolescente, eu conseguia ser uma simples observadora em silêncio. Passava horas a fio observando meu pai pintar seus quadros, outras vezes ficava sentada por horas num monte de minério de ferro, quarando no sol com a preguiça de um calango. Desenhava ou brincava sozinha. E era bom, viu!
Hoje escrevo.
A necessidade de produzir para sobreviver ou adquirir para ostentar são praticamente incompatíveis com o uso do tempo para a contemplação das coisas simples. O ócio é quase um pecado, mas estou descobrindo que sou privilegiada. Hoje tenho condições de voltar a ser aquela criança. Preciso agradecer a algumas pessoas.
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DOS CHAMADOS EM GARRAFAS, ÓVULOS, PROPÓSITOS E COINCIDÊNCIAS
Vôo Edmonton/ Denver, rumo ao Brasil, 03/12/19
Do lado de fora da aeronave os campos estão cobertos de frio e branco. Sem a rede que me conecta ao mundo, meu telefone apenas me oferece uma opção musical, The Wonder of Life. Às vezes me pergunto se as coisas acontecem mesmo com propósitos definidos, destinos programados, ou pelo capricho das coincidências. Essa música é nada mais ou menos que aquela que me levou à mais profunda reflexão de vida há exatos nove meses, no dia 06 de março deste ano. Coração exposto diante da minha realidade indubitavelmente humana, expirando prantos e inspirando verdes folhas entremeados pelos laranjas das espatódeas e estradas de terra, senti meu total esvaziamento, algo como quando estamos sós diante de um espelho que nos mostra a falta do cetro e da coroa. Não havia ninguém ao lado, embora eu secretamente desejasse pelo colo qualquer que me afirmasse que até o vazio fazia algum tipo de sentido. Desejei por minha mãe. Talvez ela estivesse ali, no silêncio dos que estão mortos. Lembrei-me de Leonardo e da sua solidão em seu corpo sem vida. A saudade é um sentimento que me confunde. Perco-me entre a falta e o medo. Durante dezessete horas seguidas senti a mesma música desfolhar, nota a nota, minhas várias peles sobrepostas em camadas depositadas em 51 anos de vida. Escrevi. E o que escrevi saiu de mim como o óvulo que busca cegamente pelo algo que o fecunde em algum tipo de vida. O encontro de almas parece percorrer um caminho semelhante, coisa parecida com a fecundação dos seres humanos. É preciso que tudo esteja absolutamente em seu lugar, que as situações estejam em total convergência. Há médicos que, embora contraditos pela demografia, afirmam que uma gravidez é algo parecido com um milagre. Penso que estão certos, e também assim penso para os encontros de almas. Podemos passar vidas sem presenciar milagres a ponto de duvidarmos de sua existência. Quantos bilhetes em suas garrafas alcançaram praias desertas ou não foram lidos porque os pescadores ainda não haviam saído para a lida no mar em busca daquilo que lhes alimentasse além de seus corpos físicos? Mas algum dia, talvez por milagre, propósito ou coincidência, talvez por magia ou acaso, o pescador, numa hora qualquer de contemplação ou atenção, possa esbarrar em algum chamado numa garrafa finalmente exposta pela maré que se abaixa. No dia 06 de março eu não imaginaria que minha escrita, insistente e despercebida nas muitas praias, atingisse um feed do outro lado do planeta, e que sequer despertasse a atenção do contemplador que se pusera , meses atrás, a observar duzentas vidas naquele oceano de muitas histórias expostas. Mas assim é o mar para aqueles que se prestam a sentar-se à sua beira. O mar nos responde, mesmo que não tenhamos feito perguntas. Cabe a cada um escuta-lo ou não. Hoje, nove meses passados, óvulo fecundado, ando cheia de vida e de amor, porque algum pescador atento se prestou a ler minhas mensagens escritas e jogadas ao mar.
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QUÉBEC EN FRAGMENTS ET FLEURS
Cidade de Quebec, 20/07/19
As flores tem um apelo especial em mim. Tenho flores na minha pele, nas minhas paredes, panos, poemas, lembranças dos meus pais. Apaixonei-me há pouco por aquele que me enviou rosas além mar e continuo a amá-lo porque vejo flores em seu olhar e atos! Assusta-me o fato de como andam em menosprezo na minha terra pelas mulheres que parecem se envergonhar do feminino que as flores revelam...onde foi que se perderam? Algumas mulheres por lá andam enchendo seus jardins com a aridez dos cactos e retidão das poucas cores. Estaria o feminino em desuso? Isso seria uma pena, penso. Passear hoje no verão pelas ruas de Quebec lembrou-me de como a arquitetura pode ser feminina, bela e alegre. Perguntei-me de onde vinha essa alegria que parecia estar ausente no inverno de 2008 quando por aqui perto estive. No meu regresso ao Brasil levava a certeza da minha latinidade e a estranheza pela falta de sorrisos. "Volte no verão, Iara", me disseram! Aqui estou, pouco mais de dez anos depois, feliz por ter voltado! Acho que alguns questionamentos foram respondidos...talvez, apenas talvez. Onde “flores” podem ser abundantes, ainda que não o sejam, são vistas com desdém. A falta ou impossibilidade traz consigo o valor daquilo que não se tem ou pode ter. Os invernos em Quebec são rigorosos e “maltratantes”. Seu passado de guerras perdidas pisoteou seus jardins. Hoje apaixonei-me por esta cidade. Ora, quem diria? Ela me ofereceu flores em suas janelas, cores das portas e fachadas, ofereceu-me alegria de viver em cada pedacinho das suas calçadas. Que bela maneira de disfarçar amarguras e esconder o rancor de suas derrotas...flores!!!​
O CAMINHO TAMBÉM SERVIU AOS DINOSSAUROS
Alberta, Canadá, 14/07/19
Estar próximo à natureza é uma das formas mais peculiares de entender nossa pequenez. Os rios continuam a fluir sem considerar nossos conflitos e mortes. As árvores trocam sua roupagem pelas estações e ainda continuamos a nos preocupar com as adequações do próximo verão. Montanhas descascam suas rochas enquanto adquirimos sulcos em nossas faces. Passamos pelos mesmos vales onde caminhavam dinossauros - gigantes que tomam vida em contos lunáticos de cinema - e certamente daqui a alguns poucos mil anos outras espécies poderão nos conhecer via ossadas em museus e dizer o quão interessante pareciam ser nossas vidas. Sua vida é interessante? E porque não seria? Não acordamos todos os dias com 24 horas por vir que poderiam nos levar a caminhos distintos dos que tomamos no dia anterior? Se nosso destino certamente é virar poeira ou ossada de museu, porque não nos arriscarmos em trilhas que permitam maiores emoções aos nossos olhos e corações? As minhas jornadas sempre me pareceram com maior sentido quando minha coragem superava o medo e me permitia suspirar a cada curva que se apresentava. Amo estradas. Hoje, enquanto fazia o percurso dos dinossauros, lembrei-me de como era prazeroso estudar as montanhas rochosas na oitava série. E elas são ainda mais bonitas do que imaginava! Será que meu professor ainda vive? Será que ele teve a oportunidade de ver o que ensinava? Que bom que eu tive...obrigada, meu amor, por mais um sonho de menina realizado! Eu era louca pra conhecer as rochosas!
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A BONECA NÃO ENTREGUE E O RETORNO DO ABISMO DE TAIGETO
Belo Horizonte, 07/04/19
Querida amiga,
Há tempos não recebia uma carta e precisava te dizer como foi gostoso viver novamente a surpresa dos destinatários! No dia, embora eu quisesse te responder de imediato, pude apenas te passar um telegrama. Mas eis que segue minha carta resposta, e, como não poderia deixar de ser, é uma carta bem extensa, então te prepara!
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Embora eu tenha passado quase uma vida escrevendo cartas, a vasta maioria nunca foi enviada, nem sequer guardada. E há dois anos, minhas cartas foram substituídas por poemas. É que descobri que as lembranças em metáforas me resguardam como bons véus. Num poema não há o que se entender, apenas sentir.
Em sua carta, belíssima, somos levados a refletir sobre o significado da maternidade, e ao fechá-la com um ditado africano que dizia “é preciso uma aldeia para fazer crescer uma criança” seguido por seu apelo “resta-nos ser essa aldeia”, fiquei em dúvida. Ser aldeia seria fardo ou bênção?
Decerto há momentos em que, nós mulheres, caímos em dúvida, tamanhos são os desafios de ser mãe. Mas viver já não seria, por si só, o maior dos desafios?
Entender que a maternidade possa ser mensurada como sendo o trabalho de uma aldeia inteira não me parece muito justo, nem com a mulher, nem com a criança. Afinal, que “ser” conseguiria executar trabalhos hercúleos fora das mitologias, e que “outro ser” seria capaz de acumular a demanda voraz dos minotauros num corpo infante?
Às vezes penso que não nos cabe o comparativo dos caminhos que tomamos versus os que não tomamos, porque afinal, os que não escolhemos nunca existirão, salvo em nossos pressupostos ou em vidas alheias, as quais também não nos cabem. Eu cá prefiro pensar que fiz as escolhas certas, ainda que tenha me privado de inúmeras outras realidades. Optar por ter filhos foi apenas um dos muitos caminhos da minha vida de mulher, e nunca me desfiz da condição biológica feminina, que me permitia gerar vida doando meu corpo por meses, feito uma incubadora de aves. E lhe juro, sentir uma vida dentro da minha barriga foi a experiência mais gratificante que vivi como Iara. Em sua carta, pelo carinho que falou de sua filha, percebi que você também é feliz com esta condição!
Mas outro dia esse tema, que nos é muito caro, surgiu à tona quando nos foi colocada uma reportagem que falava de uma mãe que foi à justiça para entregar seus filhos ao Estado, sob a alegação de não os amar mais, “munindo-se” de uma justificativa poderosa (será?): um vídeo de seus filhos com os tais comportamentos que, segundo ela, eram a razão do seu desamor. E eu, diante deste texto, expressei todo meu repúdio a essa mãe. Houve opiniões contrárias, claro, uma vez que se olharmos com total empatia, até psicopatas terão nossa misericórdia.
Depois de nossas discussões acaloradas (como ser diferente quando nos trazem esse tema?), razão de sua carta, continuei a questionar tal tema em minha mente. O que é que tanto me incomoda quando vejo mães que tem esse tipo de atitude? Fui buscar minhas respostas num dos meus livros de vida, “Mulheres que Correm com os Lobos”. Nele eu sempre acho pistas e, por vezes, respostas.
Trago aqui um trecho que é responsável pelo meu entendimento parcial do que é ser mãe: ser doador na medida de sua possibilidade.
Esse trecho conta parte da estória de Vasalisa, uma menina que recebe uma boneca de sua mãe, quando diante de sua morte iminente:
“A mãe moribunda chamou Vasalisa, e a criança de botas vermelhas e avental branco ajoelhou-se ao lado da mãe.
— Essa boneca é para você, meu amor — sussurrou a mãe, e da coberta felpuda
ela tirou uma bonequinha minúscula que, como a própria Vasalisa, usava botas vermelhas, avental branco, saia preta e colete todo bordado com linha colorida.
— Estas são as minhas últimas palavras, querida — disse a mãe. — Se você se perder ou precisar de ajuda, pergunte à boneca o que fazer. Você receberá ajuda. Guarde sempre a boneca. Não fale a ninguém sobre ela. Dê-lhe de comer quando ela estiver com fome. Essa é a minha promessa de mãe para você, minha bênção, querida. — E, com essas palavras, a respiração da mãe mergulhou nas profundezas do seu corpo, onde recolheu sua alma, e saiu correndo pelos lábios; e a mãe morreu.”
A interpretação arquetípica da autora, Clarissa Pinkola Estes, mostra-nos o significado da doação da boneca como a passagem do legado de ensinamentos de cada mãe a seus filhos, e sua morte prematura como o rompimento necessário das cordas de ligação para que a criança tenha a oportunidade de aprendizado vida-morte-vida, e avance enfim à maturidade.
O que esse conto tem a ver com a tal reportagem? Bom, no meu entendimento, tudo. Indo um pouco mais além, entendo que cada mãe entrega as bonecas que consegue “confeccionar”.
Há mães que entregam bonecas de pano, rendas, outras de porcelana, plástico, cristais ou trapo e pequenos gravetos, bem vestidas ou descabeladas, algumas são entregues sem pernas ou rabiscadas. Cada uma com a beleza daquilo que se pode doar. E aí está todo o drama das mulheres: comparamos as bonecas e imaginamos que precisam ser iguais. Porque se a própria mãe em cada uma de nós tem uma "densidade" diferente? Como seres distintos que vivem experiências únicas, o que passamos adiante não poderia nunca ser uma paleta monocromática, não é? Doamos o que temos, o que aprendemos, mas doamos. Conheça “A Árvore Generosa”, de Shel Silverstein, em minha opinião, a analogia mais bela sobre a doação materna.
Mas sim, é também preciso ser lúcido e admitir que há mulheres que pariram, mas se recusaram a entregar suas bonecas, e os motivos podem ser vários, desde a ausência da boneca a seu total apego, passando pelo capricho da recusa ou incapacidade de entrega. A mãe da reportagem me pareceu um desses casos, e talvez um pouco além. Tal atitude de abandono me levou à associação inevitável com a existência do “Abismo de Taigeto”, onde bebês espartanos indesejados, ou fora dos padrões comunitários, eram simplesmente lançados do alto do abismo para terem suas vidas retiradas de forma covarde. Em Troia, o choro da criança, seguido do som abafado de seu corpinho nas pedras, foi responsável pela morte de um mito em mim...ahhh Ulisses, como você ficou pequeno.
Acontece que Abismos de Taigetos repletos de corpos pequeninos sempre estiveram presentes...são muitas Isabellas, Bernardos e outros tantos nunca nomeados – inadequados e inoportunos. Entristeço-me.
Então, talvez eu nunca pudesse mesmo falar em retorno do abismo como sugeri no título dessa carta. Nunca deixou de existir. E embora em minha mente eu tenha preferido alienar-me de sua existência, há algo que me assusta imensamente... a atual aceitação da prática do “expurgo em abismos” como forma de aliviar nossas responsabilidades com quem colocamos nesse mundo.
Mas então, diante disso, o que fazer? Rezar para que “aquela das dezessete despedidas, possibilidades natimortas e infâncias interrompidas" esteja a esperar no fundo do abismo com seus braços abertos, alcançando cada criança antes que seu corpo atinja o chão? Seria uma alternativa, porque não? Afinal qualquer forma de amor é melhor que amor nenhum. A adoção estaria aí para nos mostrar isso. Mas nem sempre... pois que não há consolo para os expurgados pelos pais. Deles esperavam-se as bonecas, não o abandono, e necessidades de criança são assustadoramente marcantes em nossas vidas. Para isso simplesmente não há explicação.
Obrigada pela oportunidade de reflexão!
Forte abraço,
Iara
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ESPATÓDEAS PODEM SER SURPREENDENTES
Belo Horizonte, 06/03/19
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Esse será um texto destoante, e muito extenso. Nada nele reflete o momento atual de festas e fantasias ou mesmo de indignações políticas. Reflete apenas um momento muito intimista que quis compartilhar com aqueles que gostam de ler.
Minas é um estado intimista, e eu sou filha desse estado. Rodar em suas estradas é como fluir em artérias que parecem sempre levar para o mesmo lugar. As montanhas não nos permitem o escape do mar, então rodamos em círculos, abertos em janelas que dão sempre para um relevo limitante ou um horizonte de terra sem fim.
Retornos são sempre muito difíceis para mim. Então, o que a princípio seria feito na terça foi deixado para a quarta de cinzas. De Diamantina retornei a Serro e busquei um local para passar a última noite e seguir de volta pelo mesmo caminho que havia feito no início. A intenção era fotografar a estrada entre Serro e Conceição do Mato Dentro. Eu havia passado por ela e queria que se perpetuasse em minha mente.
Era noite e Serro estava iluminada. A noite sempre me faz muito bem. Embora a arquitetura da cidade insista na similaridade, percebi que Serro era diferente em algum aspecto. Seus casarões em ruas mais apertadas, estratificadas em curvas de nível, pareceram-me mais imponentes. Ou talvez fossem meus olhos que os perceberam de forma diferente. Certamente em 1988 quando a visitei pela primeira vez eu não a olhei como ontem. Pisar no chão de madeira e abrir as janelas do quarto para o vale de casas certamente me tocou mais emotivamente. E fiquei ali naquele quarto fazendo companhia para mim mesma, imaginando as histórias que aquele ambiente havia testemunhado. A cama de casal sempre me sugere amor, mas as realidades são muitas. Quantas Iaras teriam passado por ali sozinhas? Quartos dizem muito, e apesar disso, pouco ouvimos o que têm a dizer. As histórias são esquecidas, pessoas são esquecidas. E minha história por ali não faria diferença alguma para quem fosse ocupa-lo depois de mim. Nunca imaginarão que, embora eu estivesse só, não era solidão o que sentia. Eu já senti a solidão em quartos, meu e de vida alheia. Ela aparece para cada um de forma diferente. Pensei no meu amigo que se foi tão cedo e na solidão imensa que presenciei em seu quarto. A solidão é um sentimento que entristece. Mas o sono nos faz esquecer disso tudo.
Pela manhã rodei um pouco pela cidade e as pessoas lavavam as ruas, abriam as portas do comércio, carros de autoescola voltavam a circular, senhorinhas passavam dizendo bom dia, meu telefone voltava a tocar. Não sei explicar o que sempre sinto no último dia de cada viagem que faço, mas acho que é como se fosse um filme emocionante que te faz sublime por um tempo e chega ao fim, sendo abruptamente substituído por um comercial qualquer, como mundos paralelos nos quais você alterna sua vida.
Mas eu queria a recordação daquela estrada e logo procurei meu rumo. Com o caminho marcado no GPS me enchi de expectativa! O caminho foi se fazendo e não o reconheci. A estrada de terra não chegava e caminhões passavam com mais frequência. Outra cidade chegou, e mais outra. Vi então que não era o mesmo caminho! O GPS me levara para um caminho alternativo, talvez mais curto. E aquilo me trouxe uma extrema frustração. E todo aquele sentimento de um fim sem retorno e sem lembranças foi tomando conta de mim. Aceitei, mas não sem tristeza.
Mas se a vida não tem surpresas, certamente não é vida de Iara.
O Waze não tinha me levado para o caminho mais curto, mas para um caminho com o dobro de quilometragem! Eu e o Waze nunca tivemos mesmo uma relação muito boa! Rsrsrsrs...Ao invés de me levar pela MG-010, levou-me pela rodovia BR-259, passando por Sabinópolis, Guanhães e Senhora do Porto. O caminho não tinha só duplicado, como também era sem graça e cheio de carros e caminhões.
Mas a vida tem suas surpresas como falei, e foi em Senhora do Porto que tive uma grata amostra disso...a rota mudava para outra rodovia, a MG-229, que seguia até Dom Joaquim e então Conceição do Mato Dentro pela MG-010. O trecho até Dom Joaquim não só não era asfaltado, como tinha uma paisagem linda, abrindo-se com verdes de toda sorte e chão alaranjado como as floradas das espatódeas salpicadas pelo caminho. Foi engraçado perceber o quão surpreendente essa árvore se tornou para mim ao longo da rota. Sempre a critiquei nas cidades, pois suas flores, ao caírem no chão, transformavam-se num verdadeiro perigo para pedestres, uma vez que, ao pisá-las, corria-se o risco de queda.
Sim, tudo pode ser surpreendente e lindo quando se está em seu local natural e verdadeiro, principalmente quando nos dispomos a enxergar o que realmente está sendo mostrado. Parei diversas vezes para fotografar as coisas mais simples, que certamente se espalham pelas paisagens de todo país. Mas sob meus olhos, nessa tarde, tudo me pareceu muito mais especial. As fotos que se seguem foram tiradas nesse caminho!
Ao final, foi a natureza que me soprou um pequeno segredo que veio em forma de analogia...não seria assim também o amor? Esse amontoado de possibilidades e caminhos que se fecham e se abrem quando menos se espera?
Segue a música do dia :
The Wonder Of Life, do compositor Alexandre Desplat. Acho que seu título não foi por acaso. Escutei essa música freneticamente durante todo o percurso, levando-me a fazer as mais diversas reflexões pelo caminho, incluindo esse texto.
Sim, eu sou uma frenética musical...que bom que chegou até aqui!
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QUANDO AS COISAS MUDAM
Milho Verde, 05/03/19
Por volta dos 6 ou 7 anos, depois de muito pedir, eu ganhei um "jeepinho" de plástico vermelho do meu pai! Finalmente eu poderia fazer algo que meus irmãos faziam: puxar carrinho com cordão na estradinha do nosso sítio!
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Como uma criança pode saber do que muito gosta sem ter vivido nada ainda?
Ou seria eu um adulto que guarda sonhos de criança não vividos?
Não sei ao certo, mas aqui e agora, em Milho Verde, local onde estive há uns 28 anos atrás, além das lembranças de juventude, eu também me lembrei muito da minha infância. Lembrei que pensava que, quando crescesse, eu iria comprar um "jeep" ! Eu não cresci muito, é fato...hahaha...mas meu sonho se intensificou muito agora!
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Na verdade foi um dia de muitas emoções, da tristeza à saudade, empolgação e surpresa! O vilarejo está mudado...não reconheci a rua com as casas que desenhei para um trabalho de arquitetura. Apenas uma casa me pareceu familiar, a casinha da foto abaixo. E a foto nem ficou tão boa, mas trouxe um pedacinho do meu passado. Ela ainda mantém um curralzinho na sua lateral.
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Mas o melhor das cidades talvez sejam mesmo as estradas que levam até elas! Tenho acreditado cada vez mais nisso. Os caminhos sempre me dão extremo prazer!
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Não reconhecer as casas e não ser capaz de ver mais a beleza da esplanada que abriga a igrejinha à beira do vale rochoso me trouxe uma certa melancolia, talvez acentuada pela coletânea de adágios que me embalou até aqui. Adoro músicas tristes ...segue o link da música do dia, Adagietto - compositor Mahler.
Apesar disso, também tive uma grata surpresa entre Diamantina e Milho Verde: encontrei o vilarejo de São Gonçalo do Rio das Pedras! Um lugarzinho pra se voltar. E as estradas???
Meu Deus...acho que te vi!!!
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​A ALGUÉM DESCONHECIDO
(passagem de 2018 para 2019)
Sempre acho as coisas mais interessantes quando chega a madrugada, não tem jeito.
A noite tem algo de especial mesmo.
Sobre a sensibilidade do que li e vi aqui, me vi um pouco no seu texto, poema e foto.
Sobre caminhos, já tive vontade de voltar atrás e não ter percorrido alguns deles.
Algumas vezes deixo que me levem com preguiça de pensar, fecho os olhos, vou no fluxo.
E só quando bato com minha cara em paredes que não levam a lugar algum, que me lembro que não coloquei aquelas linhas guias para me trazer de volta nesses labirintos.
Minha memória nunca contribuiu muito.
Então suponho que retorno é algo pouco provável para mim, e como sempre estou perdida mesmo, sigo adiante.
E no adiante sempre tem aquelas coisas legais que te distraem no percurso.
Sempre aparece uma flor, uma plantinha, coelhos, uma maritaca, nuvens com caras de coisas.
Eu acabei de ler a carta do jovem que se matou. Senti vontade de dizer a ele que vale o caminho, embora coisas aconteçam para te dizer o contrário. Eu poderia tê-lo ajudado na passagem do ano. Estava aqui, de bobeira.
A vida está sempre por um triz e lembrar disso é muito ruim.
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​SOBRE O AMOR
Para os falsos amantes
Belo Horizonte, dezembro de 2018
Qualquer um pode escrever sobre o amor, porque a escrita pode ser um arranjo interessante de palavras quando se tem educação literária. Pode ser um arranjo que até toca as pessoas, sem sequer ter significado para o autor, sendo apenas isso, um arranjo de palavras para os outros, nunca para si mesmo.
É como tocar um instrumento sem sentir a música, quando todos dançam e têm seus pelos arrepiados, menos você.
É como ler sem viver a interpretação, onde todos se emocionam com suas pausas e respirações ensaiadas, mas o choro nunca irá interrompê-lo.
É como ver sem perceber o outro.
É como falar de filhos sem nunca tê-los tido.
É como fazer criações de roupas que nunca serão usadas por pessoas reais
É como fazer um projeto arquitetônico arrojado se esquecendo de que arquitetura foi feita para humanos.
Habilidades técnicas serão sempre apenas isso, técnicas que podem ser aprendidas.
​Escrever para si mesmo requer a experiência daquilo que se vive. Requer paixão pelo que se fala.
E paixão não é para qualquer um.
Sem paixão e sua disposição aos sentimentos que vêm junto, os textos de amor podem até conter beleza, mas são desprovidos de autocura.
Bons observadores são capazes de falar sobre qualquer coisa, inclusive sobre o amor que não sentem. Bons observadores costumam se transformar em bons escritores.
Arranjam palavras para os outros que normalmente funcionam, para os outros, apenas.
Escrever para si mesmo, algo a ver com confissão de vida, exige a vivência, para que possa ter efeito curativo sobre quem escreve.
Se escreve e acha que não precisa de cura, sem problemas.
Palavras ao vento também são bem-vindas!
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​​​​​​​TO WHOM IT MAY CONCERN
Belo Horizonte, 2017
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Eu decidi ser mãe, você o filho.
Não vejo problema com sua escolha, mas porque você veria com a minha?
De fato, minhas botas não pisaram os solos de tantos países, mas meus ouvidos foram conduzidos em ondas sonoras e por lá bailei as mesmas valsas. Rodopiei ao lado de Zaz “Sous le ciel de Paris”, descobri com Ojos de Brujo que “No necessito tener alas pa volar”, em outros aires, pelas mãos apaixonadas de bandoneons, “Vuelvo al sur, como se vuelve siempre al amor”. Mas foram nas terras de Istambul que conheci o mais encantador dos amantes, “Nazende Sevgilim”, o homem de face ainda não revelada que tocaria meus cabelos com rosas de primavera. Sim, foram inúmeras viagens em sonhos musicais enquanto criava meus filhos.
Não desdenho suas uvas, ao contrário, fecho meus olhos e tento saboreá-las todas ao ler e ouvir suas histórias. Sua vida é repleta de encantamentos, videiras saudáveis, de folhas e frutos brilhantes, dignos dos mais valiosos “Chianti” da Toscana. Mas enaltecer sua vida não significa diminuir a minha. Escolhi cada pedacinho dos meus caminhos, mesmo que de forma estabanada ou juvenil. Foram escolhas minhas, e que moldaram a mulher que hoje lhe escreve essas palavras.
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E hoje eu gosto dessa mulher.
Sabe, percebo a dificuldade dos homens em entender escolhas distintas às suas. Nada parece fazer sentido. É que a natureza masculina simplesmente desconhece total empatia. O que é, de certa forma, desejável. Afinal, um mundo absolutamente feminino seria um total absurdo. Mas um mundo sem a devoção feminina, em especial, mulheres mães, seria um total desastre.
Entre o absurdo e o desastre, fiquemos com um mundo de homens e mulheres.
É realmente quase impossível entender o que é empatia quando não se sabe o que é dividir literalmente o mesmo ponto no universo com outro ser. Quando a gente divide nosso corpo com uma criança, bem aqui dentro da nossa barriga, a gente consegue sentir algo parecido, meio carne da nossa carne, dor que dói na gente. Difícil explicar. Talvez sua mãe consiga te dizer melhor com seus afagos quando você estiver triste.
Sim, mães sabem como!
Mas mães também deveriam saber que essa ocupação não poderia ser eterna. Como você bem sabe, coisas eternas engessam, limitam, entorpecem. As cordas que unem mães a seus filhos precisam ser cortadas,
simplesmente porque somos seres únicos.
E existe o momento de cortar as cordas.
Eu sou única, assim como meus dois filhos. Somos, hoje, uma família de três indivíduos que ocupam três espaços distintos, cada um com sua história para um dia contar. Algumas mães se esquecem que as cordas precisam ser cortadas. Alguns filhos se recusam a cortar as cordas. Mas a vida está aí para eventualmente lembrá-los.
Ando rascunhando vida, mas pretendo passá-la a limpo, e nessa hora, quem sabe meus caminhos me levem de fato a tocar com as mãos a temperatura das poeiras de cada aeroporto imaginário que frequentei. Pouco? Talvez. Mas penso que para quem nasce com pelo menos cinco sentidos e deles pode usufruir com total intensidade como faço, eu vivo minha vida como poucos o fazem!
Sim, eu me chamo Iara,
e sou uma mulher mãe.
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ESTANTE
Na minha varanda, em um dia qualquer de 2016
Devagarinho a gente vai entendendo que pessoas entram e saem de nossas vidas, não pelo motivo que queremos, mas pelo motivo que precisamos.
E, de fato, nada é por acaso. Cabe-nos aprender a organizar cada um em seu lugar.
Existem espaços especiais, espaços escondidos, outros empoeirados, espaços vazios e alguns bem apertados.
De vez em quando a gente faz uma limpa e troca peças de lugar.
Tem horas que pensamos que não cabe mais ninguém e se surpreende.
Em outras a gente simplesmente acha que escuta o eco do vazio, por vezes doído, por vezes querido.
Mas tá tudo ali.
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CARO JABOR
Belo Horizonte, em algum momento de 2015, após ler um texto atribuído a Arnaldo Jabor, acredito que erroneamente
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Renovação e reinvenção de um mesmo ser é coisa da qual tenho cá minhas cismas se realmente existe! Se for o caso, aqueles que o conseguem, não sabem de fato como conseguiram, apenas o fazem. Para nós, humanos da espécie “merus relis mortalis”, o problema não é ficar casado, mas manter-se fiel por tanto tempo! Banalizando aqui a fidelidade apenas no que tange ao sexo, e acreditando que o “ser infiel” para alguns não afeta em nada, seus casamentos duram séculos! E lá pelas tantas, quando sexo já não está no topo das importâncias, olham para seus cônjuges sorridentes e orgulhosos, vangloriando-se do feito feliz de tantos anos. Esse sorriso amarelo e discurso de contentamento normalmente vem do homem infiel tranquilo ou da mulher traída consciente e aliviada por já não ter que, digamos de forma singela, “se doar” para o marido! Mas olha, além do motivo acima, divórcios também acontecem quando descobrimos que fizemos escolhas mal-feitas, quem sabe adequadas para um momento, mas inadequadas para uma vida. Além obviamente pela insistência na fidelidade enquanto dure ou pelo espírito intranquilo e irrequieto daqueles que entendem que ninguém é de ninguém. Casamento e sua consequente monogamia religiosa são invenções da sociedade para colocar uma certa ordem. O que é bem válido. Divórcio é consequência dos que têm dificuldade de adequação a essas invenções. Apenas isto, nada mais.
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