Fim de tarde chuvoso, chegou em casa com o desconforto de choro seco apertando o peito. Sempre fora sensível aos dias molhados e melancólicos em Pueblo.
Deixou as compras na cozinha e foi para o quarto.
No altar, colocou as rosas que trouxera do mercado ao lado da foto de Alma. Retirou as velas da gaveta e as acendeu para as duas santas que compartilhavam o pequeno espaço.
Madrecita lhe ensinara os choros aos pés de Guadalupe, mas fora abuela quem lhe dera a imagem de Nuestra Señora de la Santa Muerte. Essa também seria a responsável por levá-lo, escondido e inúmeras vezes, aos festejos de finados.
O sincretismo familiar sempre o confundira, mas o vazio deixado pela falta de Alma fez com que pensasse, afinal, como madrecita. A morte não dava espaço para alegrias. Desde então se sentia fora do tom. Enquanto chorava, os festejos da época e crenças de abuela pareciam demasiadamente fantasiosos.
A saudade era má, misturava falta e medo. Após a perda, apegou-se ao que podia.
A dor o levava a insistir secretamente pelo retorno de sua Alma. Preparava Mole Poblano, lembrando-se sorrindo de como ela gostava dessa mistura exótica. Na mesa posta para dois, mantinha a taça de Alma cheia.
Mas eram dias difíceis.
Procurou pelo conforto de Chavela. Jamais lhe negara colo. Da coleção, escolheu “Adoro”, a preferida de Alma. Fechou os olhos e deixou que as lembranças tomassem o lugar. Ao escutar “Tu Me Acostumbraste”, deixou cair a lágrima represada. Outras muitas a seguiram.
Nessa hora, sentiu o toque de mãos enxugando o rosto. Pensou estar sonhando...era Alma. Então o céu se abrira? Entre espanto e felicidade: — Você veio!
Caridosa, sorria com os olhos. Levando as mãos ao peito de Ângelo: — Sinta, é aqui onde me encontro!
Pensou que finalmente tivesse morrido. Reencontrara Alma.
Dançaram, beberam e se lambuzaram de amor e chocolate salgado.
Gargalharam com Chavela: “No soy de aquí, ni soy de allá... No tengo edad, ni porvenir... Y ser feliz es mi color de identidad”...
Abuela estava certa. Tudo parecia fazer sentido agora.
Ângelo ouvia fascinado Alma lhe contar como chegara ao paraíso de Tláloc. Local de descanso e abundância, para ali iam os que morriam pelas águas: — Estou feliz. Você também deveria estar. Mas terei que voltar antes do amanhecer.
Ângelo se entristeceu. Inconformado: — Vou com você, minh’Alma!
— Não há pressa, meu Ângelo, todos temos nossa hora. Não vim para buscá-lo, apenas acalmar seu pranto! Agora que verdadeiramente percebeu a Santa Muerte, entenderá que jamais me ausentei.
Então Alma se foi. E Ângelo chorou novamente. Não se viu capaz de entender.
Sentiu o peito rasgando. O vazio puxava para fora o coração. A dor, insuportável pela segunda perda, levou-o à porta de casa: — Vá.
Caminhou...caminhou e caminhou, até chegar às margens do Atoyac. Entrou no rio. Suplicou que o levasse ao encontro da sua Alma.
Pela manhã, Lupe entrou na casa. Tinha muito apreço e carinho por Ângelo. As preces diárias pediam que Santa Muerte um dia lhe concedesse a graça do reencontro com a amada.
Viu os discos de Chavela espalhados pelo chão. A agulha da vitrola batia insistente. Na mesa, taças vazias: — Patron?...
No quarto a cama desfeita, a imagem de Guadalupe sozinha no altar.
No banheiro, Nuestra Señora de la Santa Muerte caída no chão. Ao lado uma garrafa vazia, rosas vermelhas e a foto de Alma.
Sentiu um frio subir pela espinha. Frente à banheira, hesitante, moveu a cortina.
Ali, submerso na água, o corpo sem vida.
Antes que viessem levá-lo, recolheu com cuidado o que pudesse expor o patrão. Colocou a imagem da caveira de volta no pequeno altar. Ali, no amontoado de fotos do casal, pegou sua preferida, Ângelo com Alma. Apertou-a forte no peito.
Agradeceu à Nuestra Señora de la Santa Muerte pela graça concedida. Por ele orou como aprendera com a mãe de sua mãe. Pediu a Tláloc que fosse misericordioso.
Maternal, dirigiu-lhe a palavra uma última vez:
— “Ojalá, que te vaya, bonito…Ojalá, que se acaben tus penas…”
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