
Iara
que te vaya, bonito
(conto)
Naquele final de tarde chuvoso, chegou em casa com o desconforto de um choro seco apertando o peito. Sempre fora sensível aos dias molhados e melancólicos do agosto em Pueblo.
Deixou as compras na cozinha e se dirigiu ao altar discreto que mantinha em seu quarto. Ao lado do porta-retratos com a foto de sua Alma, colocou as rosas que trouxera do mercado. Retirou duas velas da gaveta e as acendeu para as santas que compartilhavam o pequeno espaço. Suas raízes maternas ensinaram-lhe os choros aos pés de Guadalupe, mas fora sua abuela paterna quem lhe dera a imagem de Nuestra Señora de la Santa Muerte com seu manto de veludo vermelho.
Também fora ela quem o levara, escondido e inúmeras vezes, aos festejos do final do mês de outubro.
O sincretismo de sua cultura sempre o confundira, mas o enorme vazio deixado pela partida de sua Alma o levara a pensar que talvez a morte fosse, de fato, cruel como afirmara madrecita. Desde então se sentia fora do tom nos dias de finados.
Aquela alegria toda lhe parecia demasiadamente fantasiosa.
Ainda assim, a dor da falta o levava a insistir, secretamente e todos os anos, pelo retorno de sua Alma no dia dos mortos. Ele preparava Mole Poblano e sempre sorria ao se lembrar de como ela gostava daquela mistura exótica de tortilhas, frango e chocolate salgado.
Na mesa posta para dois, a taça de Alma sempre se manteve cheia.
A saudade era um sentimento que o confundia, perdia-se entre a falta e o medo. Os dias que sucediam a finados eram sempre os mais difíceis. Após sua grande perda, apegou-se ao que podia para trazer conforto ao coração abandonado.
E conforto era o que Chavela sempre lhe oferecia. Foi procurá-la na sala. Em sua coleção de discos de vinil, escolheu “Adoro”, música preferida de sua Alma. Fechou os olhos e deixou que as lembranças participassem do sarau.
Não se sabe exatamente quanto tempo passou compartilhando seus lamentos com Chavela, mas foi quando entoava “Tu Me Acostumbraste” que deixou, enfim, cair a lágrima que insistia em passear por sua face. E outras a seguiram.
Somente abriu os olhos quando sentiu o carinho das mãos que tentavam enxugar seu pranto. Pensou sonhar quando sua Alma sorriu e o puxou pelas mãos. Não podia acreditar no que via. Ainda faltavam meses para que o céu se abrisse e trouxesse os mortos para visitas. E entre espanto e felicidade: — mas ainda é agosto!
Ela sorria com os olhos. Carinhosa, explicou-lhe que esse era o mês que os antepassados consideravam como o tempo de vir.
— Mas nada disso importa. Com uma das mãos no peito de Ângelo: — sinta, estou aqui!
Ângelo pensou estar no céu. Talvez tivesse morrido e ali estava ela. Mas tudo isso parecia sem importância diante do êxtase das horas que se seguiram. Dançaram, beberam, se amaram e se lambuzaram com chocolate salgado. Ângelo não lembrava qual fora a última vez que vira sua Alma gargalhar como quando cantaram:
“No soy de aquí, ni soy de allá
No tengo edad, ni porvenir
Y ser feliz es mi color de identidad”
Então essa era a alegria que abuela tanto insistia que sentisse? Tudo parecia fazer sentido agora.
No passar das horas mais felizes que já tivera, a querida Alma lhe contou como chegara ao paraíso de Tláloc, deus da chuva. Explicou que Tlalocan era o lugar para onde iam todos aqueles que morriam por circunstâncias relacionadas às águas, e que era um local de descanso e abundância. Contou que estava feliz e que deveria voltar antes do amanhecer, mas esperaria por ele. Ângelo entristeceu-se ao ver que no dia seguinte ela não estaria mais ali, e inconformado: — vou com você, minh’Alma!
Ela então o acalmou: — não há pressa, meu Ângelo, todos temos nossa hora. Não vim aqui para levá-lo, apenas acalmar seu pranto! Agora que verdadeiramente percebeu a Santa Muerte, sentirá minha presença como nesse momento, embora nunca tenha me ausentado. Estarei aqui. Confie.
Então sua Alma se foi. E Ângelo chorou novamente.
Parado ali, sozinho, viu seu peito ser rasgado pelo vazio que tentava arrancar seu coração. A dor levou-o até a porta de casa e o fez caminhar. Caminhou...caminhou e caminhou, até chegar às margens do Atoyac. Entrou no rio. Suplicou que o levasse ao encontro da sua Alma.
Pela manhã, Lupe entrou na casa. Pensou ser somente mais um dia de trabalho. Tinha muito apreço e carinho pelo patron, dedicando-lhe as preces de todos os dias. Pedia, com fervor mexicano, à Santa Muerte, que lhe concedesse a graça do reencontro com a amada. Lupe viu os discos de Chavela espalhados pelo chão.
Na mesa posta para dois, as duas taças vazias.
Caminhou até o quarto e viu a cama desfeita. Notou que a imagem de Santa Muerte não estava no pequeno altar. Chamou por Ângelo. O silêncio só era quebrado pelo som da agulha que batia e rebatia no final do vinil.
Ao chegar no banheiro, viu a santa caída no chão. A seu lado uma garrafa vazia, rosas vermelhas e o porta-retratos com a foto de sua Alma. O coração disparou e sentiu um fio gélido subindo pela coluna. Caminhou até à banheira.
Ali estava, submerso na água, o corpo sem vida.
Recolheu a imagem da caveira de manto vermelho e a colocou de volta no pequeno altar. Pegou a foto de Ângelo abraçado à sua Alma. Apertou-a forte no peito. Logo ela estaria junto às fotos dos filhos no altar florido que mantinha em sua pequena casa.
Lupe retornou ao encontro do corpo de Ângelo e então agradeceu à Nuestra Señora de la Santa Muerte pela graça concedida. Jamais falhara com ela. Por Ângelo orou como aprendera com a mãe de sua mãe. Pediu a Tláloc que fosse misericordioso.
Com olhar maternal, dirigiu-lhe a palavra uma última vez.
— “Ojalá, que te vaya, bonito…Ojalá, que se acaben tus penas…”