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sobre mãos e hormônios

Na sala de espera, enquanto aguardava o chamado do fisioterapeuta, Helena corria os olhos nos exames de rotina. Endocrinologista, entendia exatamente o que significavam níveis desregulados de T3 e T4. Certamente seria advertida pela alteração do índice glicêmico que beirava a pré-diabetes. Também levaria uma bronca por não atender às recomendações de exercícios na clínica. Não via hora para pilates.


A leitura foi interrompida quando dedinhos tocaram a mão deformada pela artrose. A menina se divertia puxando a pele flácida de Helena, que sorrindo aceitou ser o brinquedo da pequena. Constatou que os níveis de ocitocina se mantinham na normalidade. Lembrou-se das diferentes formas que esse hormônio interferira em sua vida.


Ainda jovem, nos primeiros anos da faculdade de medicina, havia Dora, a melhor amiga e companheira de quarto. Trocavam confidências e estavam sempre juntas. Eram outros tempos, outros costumes. Às meninas e moças era permitido andar de mãos dadas, sem que houvesse qualquer juízo de conduta.


Nunca esqueceria a primeira vez que tocara a mão de Dora. O imediato apego, que jamais sentira, iria se transformar, nos anos seguintes, no amor velado e incompreendido, compartilhado apenas com o diário.


Inesquecível também seria o dia em que Dora veio correndo com as mãos no peito. Jorge havia lhe pedido em namoro. A felicidade da amiga fez com que o chão de Helena se abrisse. Mas foi o anúncio do noivado que a manteve, desde então, no mundo subterrâneo dos livros e nada mais. Dali não sairia. Não se casaria, tampouco teria filhos.


A todos passou a ecoar o mantra: — Não existe vontade própria. Há somente um amontoado de hormônios que nos maneja. Somos meras marionetes atordoadas, umas mais, outras menos.


Aos quarenta anos, no evento de caridade promovido por um casal de amigos, Helena foi desafiada a se aventurar fora daquele mundo particular e frio da médica bem-sucedida. Chegara no orfanato despreparada para o que veria. Helena se especializara no atendimento a adultos. Esquecera-se completamente do que seria um rosto de criança.


Ali, em meio a carências de toda sorte, enfermidades variadas e um bando de pequeninos, um deles lhe chamou mais a atenção. Ele deixou que o saquinho de pipoca caísse, tamanho excitamento em perceber que aquilo à sua frente era a tão sonhada piscina de plástico. Alguém havia doado o brinquedo. Com água da mangueira, uma voluntária jogava esguichos na criançada enquanto enchia a piscina.


Joana, percebendo que Helena se divertia observando o menino, contou-lhe sobre Paulinho. Ele faria nove anos no mês seguinte. Tinha dificuldade em ser adotado. Além da idade, havia a cegueira quase total, causada pelo excesso de oxigênio na UTI neonatal. A mãe falecera no parto. Não se tinha notícias de pai ou parente próximo. Sem condições financeiras para criar mais um filho, a enfermeira, que lhe dera o nome, levou-o para adoção. 


Helena escutava comovida a história da criança, e, embora fosse uma situação triste, nada no menino lhe sugeria tal sentimento. Paulinho gargalhava e dava pequenos pulos animados, sacudindo os bracinhos.


Joana chamou o garoto, que veio ligeiro pedir autorização para tirar a roupa e cair na água: — Sim, mas antes venha conhecer uma amiga! Paulinho, essa é Helena.


O menino, apressado para ir se divertir na piscina, perguntou em disparada: — Cê veio me adotar? Na sua casa tem piscina? Se não tiver, cê compra uma?


Helena ficou atordoada com o interrogatório. Num misto de surpresa e cuidado, lembrou-se dos artigos sobre níveis hormonais na criança deficiente. Seguindo as recomendações de atendimento, abaixou-se para lhe responder de forma mais acolhedora: — A titia trabalha muito, talvez não tenha tempo de cuidar de uma criança tão esperta. Será que você vai gostar dessa vida chata? Não tem piscina lá em casa.


Após uns poucos segundos, Paulinho aproximou o rosto ao de Helena, tão próximo que ela pensou que iria beijá-la. Ele pôs as mãos pequeninas nas bochechas de Helena, rosadas pela falta de jeito. Bem de pertinho, olhou para ela como quem lê almas: — Seus olhos são verdes ou azuis?


Helena acomoda as mãos sobre as do menino: — Depende! Tem horas que são verdes. Noutras, são azuis!


— Que bonitos! Quando cê tiver tempo de cuidar de criança, cê vem me buscar? Se não tiver piscina não tem problema, pode ser mangueira mesmo! Agora posso ir?


— Claro! — respondeu Helena, levantando-se sem jeito e endireitando o vestido.


Desconcertada e sem saber o que mais dizer e o que fazer, despediu-se do menino e da amiga.


No carro foi inundada por pensamentos contraditórios e sentimentos inéditos. No passado sentira algo parecido ao tocar as mãos de Dora. Mas agora havia mais, uma dor no peito, um sorriso sem querer, o ímpeto de cuidar, a vontade enorme de buscar Paulinho e leva-lo consigo. Pensou que talvez esse fosse o sentimento das mães ao tocarem os bebês pela primeira vez. Já ministrara inúmeras palestras sobre o efeito da ocitocina na maternidade, mas jamais imaginaria que pudesse sentir o que ensinava em sala de aula.


Passados alguns minutos após o sentimento quase inexplicável, recobrou a razão. Ligou o carro ao lembrar-se da máxima sobre o domínio dos hormônios no corpo humano: — Isso passa!


A memória foi interrompida ao escutar um chamado: — Dona Helena, Dona Helena! — com humor — Vamos ver como anda a saúde da senhora mais teimosa que conheço!


Helena beijou a bochecha da garotinha e se despediu. Levantando-se com alguma dificuldade, justificou a teimosia com graça: — Ora, ora, doutor, estou boa feito coco! Uma coisinha aqui, outra ali... nada de mais!


Enquanto o fisioterapeuta se atentava aos resultados dos exames, Helena contemplava a foto no porta-retratos — ele, a mulher e os dois filhos ainda pequenos. Era uma bela família. Imaginou, por um momento, como teria sido sua vida se tivesse decidido por outro rumo há trinta anos. Sorriu.


— Então, Dona Helena, quem sou eu para lhe ensinar sobre o que fazer com seus níveis desregulados de hormônios, mas percebeu que precisamos maneirar nos doces e massas, não é? Tsc... tsc... tsc... nada bom! Vamos verificar a pressão. Pode ficar aí sentadinha, vou até à senhora. — Enquanto a examinava, tentava, como de costume, convencê-la sobre a importância do fortalecimento muscular e da atenção com a postura.


— Muito bem! Dez sessões de fisio aqui na clínica. Início imediato, ou melhor, amanhã. Por hora, só um convite. Almoça comigo? Algo saudável acompanhado de um bom Pinot Noir! Que tal?


E como quem não espera outra resposta senão o sim, retornou ao assento para pegar a carteira e a bengala guia ao lado: — Vamos, mamãe?


Toda vez que ia ao consultório de Paulinho, orgulhava-se de vê-lo tão bonito naquelas vestes brancas. A decisão de voltar ao orfanato naquele dia impactara não somente a vida do menino, mas sobretudo a sua.


Foram anos de dedicação à criança, que demandava cuidado especial. Dos audiobooks às traduções dos livros para o braile. Da adaptação da casa à compra da piscina de fibra. Tudo muito diferente, mas igualmente compensador.


Diante do profissional de respeito, proprietário daquela clínica de fisioterapia, Helena se sentia realizada. Nas inúmeras vezes que ele a convidara para almoçar, reafirmara que não poderia ter sido mais feliz.


Bem pequenino, o menino lhe mostrara a existência de outras verdades para além das teorias médicas.


Era certo que a ocitocina contribuíra nas decisões e rumo do seu futuro. Não tinha queixas ou dúvidas. Mas foram aquelas mãozinhas, que ousando tocar sua face há trinta anos, que a libertaram da vida solitária e sem amor, agora trocada por noites de Natal em família e sorrisos dos netos enquanto abriam presentes.


— Venha, mamãe! Dá sua mão, apoia aqui no meu braço. E me empresta aí os olhos da fada azul!


Aos setenta anos, Helena concluía que a vida era ao mesmo tempo encantadora e engraçada. Talvez os hormônios não fossem mesmo tudo, mas seriam parte do mistério acerca das coisas do coração. Da máxima sobre dominância hormonal, passou a defender que filhos completam a educação dos pais.


Olhava para o grande amor da sua vida, um homem, quem diria - o filho que jamais concebera.           




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