Na tv, o jogo do campeonato estadual entorpecia o marido. Com o copo vazio saía do transe: — Mais uma!
Carmem não entendia - e já não se importava - como um jogo entre Olaria e Botafogo poderia ser mais interessante que sua presença. Suspeitava dos trinta anos de casamento. Celular descarregado, não lhe restava muito senão o picotar de guardanapos entre garfadas e iscas de fígado acebolado. Se as mãos eram mecânicas, o pensamento viajava.
Duas mesas à frente, um rapaz mal sentara e a cabeça já intercalava celular e arredores.
Acostumada ao exercício superficial de escaneamento de vidas, Carmem rapidamente dá o diagnóstico: “esperando alguém, não mais de vinte, algo entre Z e Alpha, branco, classe média alta, sertanejo universitário, faculdade de marketing.” Para deleite ainda maior, eis que aparece a cereja do bolo: — Um Aperol, por favor. “Fechou.”
Diagnóstico concluído, Carmem se volta para o marido. Num breve surto de carinho, acariciou a barriga escondida pela camisa alvinegra e pensou: “te amo, traste!”
Uma moça se aproxima do rapaz. Atenta, Carmem reinicia a vistoria: “jovem, de menor, rosto de menina tentando esconder a idade com tonelada de make, mãos delicadas, sobrepeso nas ancas pelo uso precoce de anticoncepcionais.” Pensou que os cabelos longos por trás da orelha indicavam timidez, reforçada pela forma um tanto encabulada da abordagem.
Carmem se excita com a possibilidade de um exercício completo de análise, começo ao fim. “Devia ter feito psicologia... tava rica”.
Dez minutos de conversa e alguns sorrisos, o rapaz avança sobre a menina e lhe dá um beijo. Por debaixo da mesa ela recolhe os coturnos e os joelhos se juntam. E Carmem: “Reflexo imediato de quem se sentiu invadida”. Os braços dele se enroscam nos cabelos da garota, que mantém as mãos no colo. “Não deve beijar bem. Muito agressivo”.
Após beijos prolongados e algumas pausas para respiro, Carmem presume que se conheceram em algum aplicativo e aquele estava sendo o primeiro encontro. Ela, parecendo-lhe receosa e inibida, puxava a minissaia de malha que subia pelas coxas grossas. “Esse cara tá borbulhando testosterona... quer emplacar uma foda rápida pra valer a conta do bar.” Carmem sentia-se certeira nas análises: “coitada, será que os pais estão sabendo em que fria se meteu? Jesus...”
Numa das pausas entre amassos, a garota balbucia qualquer coisa e se levanta. Caminha em direção à parte interna do bar. “Banheiro, claro! Vai tentar se recompor e passar um batonzinho.” Os olhares agora se voltam exclusivamente para o rapaz, que imediatamente pega o celular. “Impressionante como esses moleques conseguem teclar com os polegares. Contando vantagem pra amigo... certeza.”
Quinze minutos e nada. Vinte, e Carmem cerra a testa tentando entender o que houve: “será que tá passando mal? Se bobear correu do cara.” Não deu trinta e o jovem se levanta para ir até o banheiro. Aflito, parece querer checar o porquê da demora.
Passando pela mesa vazia e sem perceber o teor do evento, o garçom pergunta ao colega grisalho se o pessoal tinha ido embora. — Ninguém me pediu a dolorosa. Te deram o tomé, foi?
Nesse momento, para alívio do garçom, o rapaz retorna e pede para fechar a conta. Põe a mão no bolso e vê que não está com a carteira: — Já volto! Esqueci o cartão no carro. O garçom torce o nariz e aguarda: “bom, ele pediu a conta.”
— Gente, a menina foi embora! — Carmem comemora — Bem-feito... pra deixar de ser besta! — Cutuca o marido: — Amor, cê viu aqueles dois na nossa frente?
— Quem?
— Esquece! Ainda bem que a gente não teve filho. Geraçãozinha complicada!
Aos 40 do segundo tempo e placar de 3 a 1 para o Olaria, o botafoguense, no auge do mau humor: — Bora, mulher!
Do outro lado da cidade, descendo do ônibus, a garota chega em casa. Mal entrou e Kika lhe pergunta ansiosa: — Como foi?
— Uma merda, como sempre. Toma! — Simone lhe entrega uma carteira e complementa: — Chato, asqueroso, mas contei duzentos reais e tinha dois cartões. Usa logo antes que bloqueie. Vou apagar meu perfil. Tem cara de insistente. — Kika não titubeia. Com um beijo na boca vai às compras on-line.
No bar, o rapaz tenta se explicar: — Não sei o que houve, acho que esqueci em casa. Meu pai já tá chegando.
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