I
Sentaram-se lado a lado, embora a situação de suas mortes sugerisse distância. Sem poder escolher assentos, ficaram os dois ali, trombas armadas e braços cruzados, aguardando a vez no julgamento.
Assemelhava-se a um salão enorme ocupado por um zum-zum-zum nervoso de quem está prestes a tomar um carão. Baratinado, Benedito perguntou à mulher: — Aquele barbudo ali é São Pedro?
— Não fale comigo, assassino!
— Que? Assassino? Cê enfia a merda de um dedal no cuscuz e eu sou o assassino?
— Pissss... calados! — Trovejou um dos guardas.
II
Ao descobrir a traição, Cícera resolvera se vingar do marido: — Alô, Nenê? Hoje não se atrase. A gente precisa comemorar...
— Qual motivo, mulher?
— Trinta dias de vigilantes! Jantarzinho de trégua.
— Invenção de moda. Continuo gordo.
— Venha, homem, e não discute! Passe no super e traz aquele vinho que gosto!
Cícera arrumara a mesa com itens de ver Deus. Sobre a toalha de Richelieu dispôs os pratos made in China e as rosas de poliéster que tirou do pé da santa. — Mainha, me perdoe, a causa é boa!
Ao chegar, Benedito tirou o vinho da sacola plástica: — Não tinha o da garrafa azul. Trouxe esse aqui. O nome é chique. — Ajeitando as lentes: — Sch... sch... schu... schwarze... ka... katz...acho que é isso. Caro pra caramba! Toma.
— Cruzes! Tem um gato preto no rótulo, cê viu? Eita carne-de-tetéu, não acerta uma! — Era difícil manter o teatro: — Vai lá tomar seu banho. Tá com inhaca de rua!
Benedito foi. Benedito voltou.
De pijama, apelou: — Mulher, cê precisa trocar esse elástico. — Na pirraça, continua: — Vou insistir até o santo de casa fazer milagre.
— O santo só vai fazer milagre depois que o escorpião sair do bolso e a Singer nova entrar por aquela porta. Peça à Marinete. Pago uma fortuna pra ficar no celular.
Sentado, Benedito acionou o controle remoto, sem dar pelota para o esforço romântico. Olhar fixo na Band, engolia o cuscuz paulista. Lá pela quarta garfada, o dedal lhe parou na goela. Sem ar, esbugalhou os olhos e caiu estatelado com a língua para fora.
— Pronto, diabo! Vai fazer outra de trouxa lá no quinto dos infernos! — Cícera se levantou para trocar o canal. — Ahhh... Bonner!
No retorno à mesa, não pensou que morto se vingasse. Tropicou na precata. Com a fuça rachada na mesinha de centro: — Disgrama... — foi o último suspiro.
III
— Próximo!...Nome.
— Benedito Amado, senhor.
— Hum. Vejamos...morte matada. Profissão?
— Fiscal, senhor! É...é... fiscal da Prefeitura.
O velho levantando o olhar, arqueou uma das sobrancelhas — Hum. Fiscal de prefeitura, marido infiel, miserável, torcedor da Ponte Preta, telespectador da Band... tsc, tsc, tsc... isso é uma vergonha... — continuou: — O que o senhor nos diz, seu Benedito: céu, inferno, limbo.
— Sou inocente, senhor! Trabalhador, cumpridor dos deveres, mijo sentado pra não sujar privada, assassinado friamente pela mulher, seduzido covardemente com meu prato predileto. Aquela ali enfiou um dedal no cuscuz e vim direto pra cá. Não sou santo, mas não mereço inferno não. — Lacrimejando de joelhos — Misericórdia, senhor, ainda não vi a macaca campeã do brasileiro!
— Presepada! — Vociferou Cícera — Era tortura diária com aquele chato do Boris e me tacou chapéu de touro com a quenga da padaria!
— Sem salseiro, senhora! Guarde energia pra sua defesa. Fui informado que vai precisar.
Cícera engoliu seco, cerrando os lábios em cima do pescoço curto. Nesse momento, um dos assistentes cochichou nos ouvidos cabeludos do santo velho: — Valha-me!
IV
Em meio ao perfume fúnebre dos crisântemos atrás do caixão semi-luxo, pagos em suaves prestações ao plano funerário, o defunto Benedito, deitado com um chumaço de algodão cerrando a língua, não se dava conta da choradeira: — “Cantemo u'a incelença, prá êsse ilustre prufessô, qui nessa hora imensa, chegô aos pés do Criadô, uma excelência da virgem, oh, mãe de deus, rogai por ele, mãe de deus, mãe de deus, mãe de deus” ...
Há tempos, num velório em Barbalha do Ceará, Benedito, preocupado que não houvesse ninguém que chorasse por ele, havia encomendado a ladainha de carpideira. Não tinha filhos, nem mãe, tampouco o afeto da mulher.
V
— Senhor Benedito Amado, não sei se o divino lhe tem apreço, mas a baita sorte tá lhe sorrindo! Em seu velório, uma beata carpideira está, nesse momento, lavando sua alma de morto com incelenças encomendadas por vosmecê. Concedido o perdão!
VI
Num sopro, Benedito arregalou os olhos e recobrou o ar. De solavanco levantou-se do caixão tal qual vampiro excomungado, cuspiu o algodão que lhe cerrava a boca e gritou: — Deus é bom!
Agradeceu à carpideira, que de mulata virou branca, e de susto teve um infarto, caindo dura para trás, aos pés do morto-vivo.
Pois que a pobre substituiu o cabra, e foi direto se ter com São Pedro, ocupando seu lugar ao lado de Cícera.
VII
A mulher do ex-defunto, sem entender o sumiço do marido e aparição daquela alma, levantou-se num “crê em Deus pai” e dirigiu-se a São Pedro: — Cadê o Benedito, aquele desgraçado? E que assombração é essa?
São Pedro encarou a mulher e lhe deu um esparro: — Humpf... Cícera das Dores do Amado! Pois bem, sua vez... vejo aqui... morte morrida. Limpe bem as orelhas, minha senhora! Essa aí do seu lado é dona Beatriz Justina, a beata que livrou seu marido de virar alma penada!
Cícera estrebuchou no chão feito possuída em templo crente. Tamanha raiva, não deu ouvidos ao sermão, tampouco se ateve ao que por fim lhe perguntara: — Dona Cícera, darei para a senhora uma última chance: céu, inferno ou limbo?
Enfurecida com a misericórdia dada ao marido, amaldiçoava pela garganta: — Raios! Demônio dos Infeeeeeeeernos!!!!!
No fundo do salão, um cara de bode proferiu bisonhamente: — Quem ousa me chamar? Ihhh... hi hi hi... huhuhu... ha ha ha....
A mulher sentiu o chão se abrir sob as havaianas de lantejoulas. Foi se dar num caldo alaranjado que lhe queimava as pernas feito agreste:
— Oxi... mas o que é isso?
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